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quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

PROFETISMO



Haroldo Reimer

O profetismo é um fenômeno comum nas culturas do antigo Oriente e sobretudo no antigo Israel, com manifestações em tempos posteriores. Está atestado por exemplo em textos dos arquivos do reino de Mari (atual Síria), na Mesopotâmia, no Egito, mas é nos textos bíblicos que ele tem a sua expressão mais conhecida e influente na Antiguidade. Trata-se da existência de pessoas que se sentiam, apresentavam e falavam perante a comunidade como portadoras de mensagens divinas. Tais pessoas recebem designações diferentes nas suas respectivas culturas e línguas. Em Mari, usava-se o termo muhhum e apilum; na Babilônia, o termo bâru; em Israel cunhou-se o termo nabi’ como termo genérico para tais personagens. Em português, usa-se o termo “profeta”, que deriva da tradução que a versão grega da Septuaginta atribuiu aos nomes semíticos originais: prophetes. Este termo deriva do verbo pro-phemi, significando “falar diante de”, “falar em nome de”. De uma forma geral, profetas são mediadores entre divindades e seres humanos.

A Bíblia hebraica tem uma estrutura tripartide (Torá, Profetas/Nebiim e Escritos/Ketubim), sendo que na segunda parte está incluída uma parcela do que costuma chamar-se de ‘livros históricos’. Os livros de Josué, Juízes, 1+2 Samuel e 1+2 Reis, conhecidos como a Obra Historiográfica Deuteronomista, constituem os ‘profetas anteriores’ (nebi’im aherim), enquanto que os livros de Isaías, Jeremias, Ezequiel e os doze menores (Dodekapropheton) constituem os ‘profetas posteriores’. Estes são, por sua vez, divididos em ‘profetas maiores’ e ‘profetas menores’, sendo o tamanho dos rolos constitutivo para tal designação; são também designados de ‘profetas literários’ justamente por causa dos textos agregados em torno do personagem profético que dá nome aos livros. A versão grega da Septuaginta reorganizou esta ordem canônica, inserindo e qualificando como profético o livro de Daniel, que, como expressão do gênero apocalíptico, originalmente figurava entre os Escritos. Também o livro de Lamentações e Baruc foram inseridos entre os Profetas. Na Septuaginta, este conjunto dos livros proféticos ‘clássicos’ foi alocado após os Escritos como parte canônica preparatória do anúncio da vinda do Messias, ocasionando, assim, a separação em relação aos livros de Josué a 2 Reis.

Na Antiguidade oriental, os profetas tinham formas distintas de obter suas mensagens. Por um lado existem as mensagens dedutivas ou intuitivas, obtidas através da observação, por exemplo, de entranhas de animais, vôo de aves, líquidos e dos próprios fenômenos naturais. Trata-se aí de mensagem similar à adivinhação. Por outro lado, há as mensagens indutivas, em geral obtidas em transe extático, sonhos, visões e audições. De qualquer maneira, as mensagens proféticas são formas comunicativas de uma experiência religiosa com determinada divindade (Yahveh, Baal, El, etc.). Um tipo de mensagem muito característico é o dito de mensageiro, através do qual o profeta se apresenta como porta-voz da divindade. Dentro de tais comunicações muitas vezes também estão inseridas palavras e avaliações da realidade histórica em que o profeta e a respectiva comunidade estão inseridos. O dito profético é outro tipo característico de mensagem profética. É constituído fundamentalmente de duas partes distintas: denúncia e anúncio. As denúncias, que constituem as fundamentações dos anúncios, muitas vezes, são análises da realidade histórico-social, enquanto que o anúncio é formalmente apresentado como fala da divindade. O anúncio pode ser negativo, falando-se, então, de dito de desgraça ou juízo, ou positivo, expressando-se com isso um conteúdo de graça e restauração. Os ‘ais’ também são gênero muito utilizado na profecia.

Os anúncios proféticos estão, em geral, direcionados para algum momento no futuro do povo ou da comunidade, em razão do que são entendidos como escatológicos. Não se trata, porém, de um juízo final da história, mas do anúncio de uma intervenção divina na realidade histórica, entendida como o “dia de Yahveh” (Am 5,18-20), no qual a divindade promoveria transformações substanciais na história do povo. Essa intervenção divina é entendida por alguns profetas como historicamente mediada, por exemplo através de uma potência estrangeira (Assíria ou Babilônia), afirmada como braço estendido de Deus para julgar o povo (Is 10,5; Jr 36). De uma forma geral, a opressão dos pobres, viúvas, órfãos, a violência contra os humildes e o desprezo do direito divino (mishpat) e da justiça (sedaqah) são apresentados como motivos para o anúncio do juízo divino.

Na Bíblia e especialmente nos Profetas encontramos diferentes tipos de profetas inclusive com designações distintas. Os termos ‘homem de Deus’ (ish elohim) e ‘vidente’ (ro’eh) por vezes são usados como sinônimos (1Sm 9,6.10), assim como também o termo ‘visionário’ (hozeh). Todos juntos são entendidos, sobretudo a partir do séc. VI aC como ‘profetas’ (nabi’ – Is 29,10). O termo nabi’, embora seja designação genérica dos profetas hebraicos, parece ser mais indicativo daqueles inseridos em corporações ou escolas proféticas (como Elias e Eliseu) ou ligados ao espaço do templo e da corte (p. ex. Natã). Por isso costumam ser designados como profetas ‘cúlticos’ ou ‘institucionais’. Estes parecem ter constituído a matriz mais comum do fenômeno.

É sintomático que os colecionadores das palavras dos profetas ‘clássicos’ (Amós, Isaías, Jeremias, Amós, Oséias, Miquéias, Sofonias, etc.) do período pré-exílico (séc. VIII e VII aC) não utilizam o termo nabi’ para designar os personagens que dão nome aos livros. A única exceção é constituída pelo livro de Habacuc (Hc 1,1; 3,1). Os profetas clássicos do séc. VIII e VII aC chegavam a negar explicitamente a designação de nabi’ (Am 7,14), ressaltando a sua atividade como um carisma diretamente outorgado pela divindade. Isso se percebe sobretudo nos relatos de vocação profética (Is 6,1-8; Jr 1,4-10; Am 7,10-17). Tais relatos funcionam como comunicações de credenciamento e legitimação para a atuação destes personagens carismáticos em meio à comunidade. Com isso, este tipo de profeta, que poderia sofrer represálias devido aos conteúdos de suas mensagens de crítica ao poder estabelecido (Am 7,10-17; Jr 36), estaria devidamente resguardado como mediador entre Deus e o povo. Os profetas cúlticos, por sua vez, tinham sua legitimidade assegurada pela instituição na qual estavam inseridos.

A partir do séc. VIII a.C. desenvolve-se no antigo Israel uma polêmica sobre verdadeira e falsa profecia. Trata-se basicamente de uma discussão sobre o conteúdo das mensagens. Tradicionalmente, os profetas institucionais tendiam ao anúncio de mensagens positivas de graça para o próprio povo e de juízo para os outros. Com Amós, na metade do séc. VIII aC, inicia-se uma nova tradição, na medida em que o juízo é direcionado também contra o próprio povo de Israel (Am 2,6-13; 5,18-20). Tal mudança de conteúdo acarreta um distanciamento crítico em relação ao centro de poder. Isso gerou, no fenômeno profético, dois tipos distintos de profecia no que tange ao conteúdo, havendo, porém, similaridade quanto à forma. Ambos se apresentavam como mediadores entre o Deus Yahveh (Mq 3,4-7) e o povo e é em nome da mesma divindade que acontecem as acusações mútuas. O caso mais conhecido é a disputa entre Jeremias e Hananias (Jr 28-29). Pela comunicação de mensagens distintas a partir da mesma matriz divina e através de formas similares resulta a necessidade de discernimento do seja verdadeiro ou falso por parte da comunidade. O código deuteronômico (Dt 12-26), do final do séc. VII a.C., além de proibir determinadas formas de profecia (Dt 18,10-14) e somente permitir a profecia indutiva especialmente na forma de ditos, estabelece também o critério do cumprimento temporal da mensagem anunciada. O não cumprimento histórico implicará na falsidade da mensagem e na condenação do respectivo profeta. Isso provavelmente acarretou uma insistência na afixação por escrito das mensagens proféticas (Hc 2,1-4). O caráter de verdadeira ou falsa profecia depende da aplicação de critérios a posteriori, não se aplicando ao modo e à origem do fenômeno. O mesmo texto de Dt 18 também estabelece o personagem Moisés como a representação ideal do profeta, que assume com isso também as funções de legislador, sacerdote, e hagiógrafo.

A destruição de Jerusalém em 586 a.C. e a conseqüente experiência do exílio constituiu o ‘gatilho histórico’ para desencadear um processo intenso de coleção das palavras dos profetas críticos. A partir deste momento, palavras dos profetas carismáticos pré-exílicos, guardados na tradição popular, passaram a ser avaliadas como verdadeiras a partir da nova experiência e passando a ser colecionadas rumo à formação de um cânon profético. Antes disso, porém, já havia processos mais circunscritos de coleção e fixação literária das mensagens proféticas, por vezes condensadas na forma de ‘panfletos’. Deve-se trabalhar com a hipótese de que em torno dos personagens proféticos havia grupos de suporte, responsáveis pela transmissão dos respectivos conteúdos (Jr 26,1-19). Evidencia-se, assim, uma relação da voz profética com formas de organização social da época.

Um fenômeno típico no processo de transmissão das palavras proféticas são as releituras, isto é, o fato de palavras, ditos, coleções serem reinterpretadas e até ampliadas dentro de um novo contexto histórico. Neste sentido, as palavras proféticas são marcadas por um dinamismo no processo de transmissão, o que termina com a fixação do cânon, mas continua em outro gênero de literatura interpretativa (p. ex. midraxes).

A maioria dos personagens proféticos é do sexo masculino. Nos textos dos ‘profetas anteriores’ são mencionadas algumas mulheres profetisas. Dentro dos ‘profetas anteriores’, o título profetisa (nebi’ah) é aplicado a Débora (Jz 4,4) e a Hulda (2 Rs 22,14; cf. 2 Cr 34,22), as quais marcam uma moldura dentro de toda a obra histórica. Também nas aberturas dos livros de Samuel e Reis aparecem mulheres como protagonistas, sem, contudo, receberem o título de profetisas. Entre os profetas ‘clássicos’, a mulher de Isaías é chamada de profetisa (Is 8,3) e em Ez 13,17 o termo é explicitamente omitido. No Pentateuco, Miriã é designada de profetisa em duas ocasiões (Ex 15,20; Nm 11-12). No período persa, há ainda a menção negativa da profetisa Noadia, que junto com outros profetas, protagonizava resistência aos empreendimentos de Neemias (Ne 6,7-14).

No Novo Testamento, o título profeta é aplicado várias vezes a Jesus (Mt 21,11; Lc 24,19), colocando-o explicitamente na linhagem dos profetas carismáticos e apresentando-o como o profeta ideal. Também Ágabo é designado por este título (At 11, 28). O título profetisa é atribuído a Ana (Lc 2,36) e indicado como auto-designação de Jezabel (Ap 2,20), mas é conhecido o fenômeno de mulheres com carismas proféticos (At 2,17-18; 16,16; 21,9; 1 Co 11,5). Freqüentemente, ocorre no NT o uso do termo profeta como designação genérica para os personagens do Antigo Testamento e como designação de uma das partes do cânon hebraico. O fenômeno da profecia é conhecido e reconhecido como um dom nas comunidades cristãs originárias (At 2,17-18), estando, assim, na tradição vétero-testamentária. De uma forma geral, o profetismo projeta a mensagem da universalidade da ação de Deus na história. Nos profetas, Deus é afirmado como o mantenedor da criação em ações de direito e justiça, sobretudo em favor das pessoas empobrecidas.


Referências:

BINGEMER, Maria Clara L.; YUNES, Eliana (org.). Profetas e profecias. Numa visão interdisciplinar e contemporânea. São Paulo; Rio de Janeiro: Loyola; Editora PUC, 2002.

SICRE, José Luís. A mensagem social nos profetas. São Paulo: Paulus, 1990.

SICRE, José Luís. Profetismo em Israel. O profeta, os profetas, a mensagem. Petrópolis: Vozes, 1996.

REVISTA DE INTERPRETAÇÃO BÍBLICA LATINO-AMERICANA. Petrópolis, v.35/36, 2000.

SCHWANTES, Milton. Profecia e estado. Uma proposta para a hermenêutica profética. Estudos Teológicos, São Leopoldo, v. 22, p.105-145, 1982.



O autor é teólogo luterano. Doutor em Teologia pela Kirchliche Hochschule Bethel, Alemanha, professor titular no Departamento de Filosofia e Teologia e no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião na Universidade Católica de Goiás, em Goiânia.

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