A falácia
do “Ide” e suas consequências para a obra evangelística e missionária da Igreja
Há tempos
que temos ouvido pregadores nos púlpitos de nossas igrejas locais expondo que o
“ide” da Grande Comissão em Mateus 28 não é um imperativo, mas, segundo o texto
Grego um gerúndio. Então não há nada de novo em repetir esta ideia: a ênfase
não está na ação do verbo ir, mas no seu sujeito. Todavia, a questão não é tão
simples assim e a tradução equivocada de um verbo, palavra ou mesmo expressão
na Bíblia pode surtir efeitos danosos à caminhada da Igreja. Em outras
palavras, as falácias criadas em torno da cristalização do “ide” refletem-se
tanto nos frutos imaturos como nos espinhos e abrolhos colhidos pelo povo de
Deus nestas últimas décadas.
Quanto ao
verbo “ide”, temos encontrado algumas traduções usando o gerúndio, mas, mesmo
assim, ainda escapa o que está em jogo no uso do aoristo do verbo πορευθεντες
(“ir”, “seguir”, “fazer uma jornada”, “caminhar”, etc). A dificuldade nossa em
compreender e mesmo em traduzir o aoristo adequadamente decorre do fato de que
o aoristo é inexistente nas línguas filhas do latim. O tradutor da Bíblia deve
compreender que o aoristo expressa um acontecimento de natureza pontual: o
importante não é quando (ontem, hoje ou amanhã), mas se a ação verbal se deu e
se tal ação deu-se de uma vez por todas. Além disso, não é apenas de aoristo
que o verbo πορευθεντες vive, mas, ali no verso 19, ele está na “voz média” e
isto também soma novas informações (e dificuldades) sobre ele. O que temos,
então, sobre o verbo mais usado em Missões Mundiais? Primeiro, ele não está no
modo imperativo; segundo, ele participa de um tempo verbal chamado aoristo de
características muito inusitadas para nós falantes da língua portuguesa; e,
terceiro, a voz, que é o que indica como o sujeito se relaciona com o verbo, é
a voz média. A voz média na língua grega acentua o agente e não a ação. Se tudo
isso não bastasse, a ênfase da perícope está no verbo “ensinar”, que é o
próximo verbo da Grande Comissão: μαθητευσατε (“fazer discípulo”, “fazer
aluno”, “fazer um pupilo”, “fazer ouvinte a alguém”). O problema é que esse
tipo de desvio de ênfase trouxe (e tem trazido) consequências negativas para o
trabalho missionário no contexto contemporâneo. Gostaria de apresentar aqui
esse assunto que merece um destaque muito maior do que simples notas de rodapé
ou curiosidades do Grego para uma exposição bíblica em púlpitos de igrejas.
Cabe
relembrar que a Grande Comissão sustenta-se na autoridade recebida por Jesus
mediante sua obra redentora e sua morte e ressurreição. Ele é a razão, o
fundamento e o que detém os direitos inalienáveis sobre o espalhamento de sua
história por todo o globo terrestre. Isto está explícito no uso do verbo “ir”,
não no imperativo, mas na voz média. A voz média em Grego designa também que
não foram os discípulos que deram início à Grande Comissão, mas outro foi quem
empreendeu a causa e nós, tão somente, fomos enxertados nessa obra já iniciada
e sem tempo certo para findar. A voz média ainda chama a atenção para o fato de
ser a Igreja e não outra entidade a cumprir a Grande Comissão. O sujeito do
verbo são os discípulos e esta é a ênfase do verbo que se encontra na voz
média!
Esclarecido
estes primeiros dois pontos: um, a autoridade e razão e fundamento da Grande
Comissão está em Jesus e, dois, é a Igreja e ninguém mais o responsável pela
Grande Comissão, precisa-se agora perceber que esta Grande Comissão não se
realiza no verbo “ir”, mas no “ensinar” (fazer discípulos). O que se quer dizer
com isso é que de nada importará aonde a igreja vá, se a prioridade não for
cumprir sua missão de fazer discípulos. Do contrário, a Igreja incorrerá no
erro de se ver como uma entidade que leva a si mesma, autogeradora de sua
missão, cujo intento seria o de levar o seu próprio projeto de poder a todos os
povos. Depreende-se disso que, não estando a ênfase no “ir”, mas no “ensinar”,
cabe a igreja não esquecer qual o conteúdo da Grande Comissão, porque isso é
muitíssimo mais importante que plantar igrejas mundo afora vazias e ocas das
doutrinas do Evangelho. Sendo ainda mais específico, não há conteúdo em ações
sociais e assistencialistas, até porque, como a própria exegese da Grande
Comissão revela, entre os que “vão”, muitos fariam assistência social melhor do
que a Igreja, todavia, atente, ninguém poderá realizar a Grande Comissão a não
ser a Igreja. O que Jesus está dizendo é que ninguém poderá ensinar o que só a
Igreja pode e deve por direito conquistado para ela na cruz e ressurreição! Só
a constatação deste imenso privilégio deveria ser suficiente para que
olhássemos o texto de Mateus 28 com atenção redobrada.
A ordem
do texto é esta: a autoridade é de Jesus e Ele comissionou a Igreja a ensinar.
Neste ponto, para que ninguém tenha dúvida, a ideia de ensino está presente de
três formas (estou trabalhando o texto Grego “ensinar” (fazer discípulos),
“batizar” (ensinar) e “ensinar” (de novo?). Contudo, se a ideia educacional
está tão presente no texto, porque não lemos isso com maior clareza? Vivemos
numa cultura fortemente avessa ao estudo e também altamente pragmática.
Enquanto o Apóstolo Paulo demorou dez anos para ser enviado às missões, hoje a
Igreja não tarda em lançar mundo afora jovens neófitos com apenas dez meses de
conversão (esta prática é resultado, certamente, da ênfase errônea no “ide” da
Grande Comissão). Agora, veja: o verbo “discipular” é ensinar; o verbo
“batizar” exige um ensino prévio (veja o caso de Felipe e o Eunuco); e,
finalmente, o verbo “ensinar” (διδασκοντες). Mas por que Jesus queria ressaltar
o caráter educacional da Missão da Igreja? Simples. A Igreja precisa continuar
a ensinar os seus batizados! E esse talvez seja o maior erro da nossa investida
evangelística e missionária, porque, uma vez arrolados em nossos relatórios que
“três mil foram salvos”, não os ensinamos a colocar em prática na vida diária
deles o ensino dado nos “evangelismos explosivos” e nas salas de catecumenato.
O discípulo, segundo o texto de Mateus, é aquele aluno que é ensinado para o
batismo e é ensinado a aplicar tal ensino às demais áreas de sua vida
(cosmovisão). Contudo, ao priorizarmos o “ide”, vemos nascer uma legião de
cristãos ateus, que vivem sem questionar as crenças de sua vida pregressa e as
crenças de sua própria cultura.
Quais as
falácias do “ide” e suas consequências para Missões? Primeiro, a Igreja tende a
depender de si ou de alguma outra coisa (Estado, Agência Missionária, Conselho
de Missões, etc) como fonte da autoridade missionária; segundo, a Igreja tende
a se tornar uma ONG ou apenas mais uma entidade beneficente sem revelar sua
natureza singular; terceiro, a Igreja tende a reproduzir cristãos ateus,
pessoas que não farão diferença em suas próprias culturas; quarto, Missões pode
se tornar um projeto de expansão pessoal ou denominacional, plantando ministros
personalistas, planos mirabolantes, placas, pedras, cimentos e tijolos; quinto,
a natureza educacional tende a ser abandonada ou ser deficitária. Uma das
consequências imediata dessa inversão dentro da natureza da Igreja se dá, por
exemplo, na área financeira, em que poderíamos ver muito mais seminários,
institutos e escolas cristãs construídas pelo mundo; investiríamos em
professores mais bem remunerados e preparados nestas instituições cristãs;
poderíamos ter muito mais Bíblias traduzidas para povos minoritários e também
ter tradutores com muito mais condições materiais e intelectuais a seu favor no
trabalho transcultural; enfim, só para citar alguns exemplos, utilizando mais
recursos tecnológicos, poderíamos oferecer mais cursos de apoio ao Campo
Missionário sem necessariamente retirar os obreiros de onde se encontram.
Enfim, a
Igreja recebeu poder em Atos 2 para ser testemunha de Cristo e não para ir!
Parece herético, mas é apenas bíblico, pois, na verdade, o “ide” de Deus já havia
sido dado ao homem e à mulher em Gênesis 1.28. Uma vez resgatado aquele mandato
cultural (“por toda a terra”), cabe à Igreja fazer discípulos ensináveis e
ensinadores, que coloquem em prática tudo o que Jesus ensinou. Quando
entendemos o contrário, o desperdício de mão de obra (e olha que os
trabalhadores já são poucos) e o desperdício financeiro são enormes. A Igreja
recebeu poder para ser testemunha de Jesus, mas precisamos saber exatamente a
que viemos; o que temos a ensinar e o que queremos como resultado desse ensino.
Se pensarmos que o poder recebido é para “ir” e não para SER, encontraremos
mais uma consequência dessa falácia: muitas igrejas locais, mesmo sendo
referência em Missões Mundiais, falharão no trabalho de fazer discípulos em sua
própria cidade. É preciso considerar que o lugar mais difícil da terra para
alcançarmos sempre será o coração da pessoa que está bem ali do nosso lado,
seja em Jerusalém, seja em Samaria, seja nos confins da terra...
E aqui,
mais uma vez, podemos aprender com o uso do verbo πορευθεντες no tempo aoristo:
não há, nesse tempo verbal, qualquer foco no detalhamento ou nos passos de como
essa ação continuará a ser empreendida pelos discípulos. Em outras palavras,
para o Dono da Igreja, o caráter santo do missionário ainda é requisito
imprescindível diante de qualquer propaganda ativista que possamos insistir em
colocar sob os holofotes que criamos.
*Por Fábio Ribas, missionário da
APMT.
FONTE: http://apmt.org.br/central-de-noticias/a-falacia-do-ide-3768
FONTE: http://apmt.org.br/central-de-noticias/a-falacia-do-ide-3768
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